Life is Strange (2015) foi um jogo que me marcou profundamente. Ele conseguiu transformar escolhas em emoções reais, construir personagens cheios de nuances e tratar temas sensíveis com muita delicadeza. A trilha sonora, melancólica, complementa a experiência perfeitamente. Não é à toa que o título se tornou o maior sucesso da desenvolvedora Don’t Nod. Por isso, quando Lost Records: Bloom & Rage foi anunciado, era inevitável sentir uma ponta de esperança, a sensação de que a empresa estava pronta para reencontrar o que sabia fazer de melhor: histórias íntimas, cheias de peso emocional e envoltas em um mistério sobrenatural.
A própria sinopse do novo título já sugeria esse retorno às origens. A história gira em torno de Swann, Nora, Autumn e Kat, quatro adolescentes que, nos anos 90, viveram um verão marcante, cheio de descobertas, tensões e também de um acontecimento misterioso que acabou separando o grupo. O jogo nos leva então a um reencontro décadas depois, já na vida adulta, quando precisam lidar com as memórias não resolvidas e com segredos que insistem em voltar à tona. Essa estrutura, que costura passado e presente, reforça a nostalgia e mostra como algumas feridas emocionais simplesmente não cicatrizam com o tempo. É o tipo de premissa que, por si só, já carrega muito potencial dramático.

E a verdade é que, em muitos momentos, Bloom & Rage cumpre essa promessa. Ele transmite com precisão aquele sentimento da adolescência, aquele misto de insegurança, intensidade e descobertas que todos nós carregamos dessa fase. Desde os diálogos simples, até os gestos sutis de cumplicidade, o jogo sabe despertar memórias universais. É fácil se ver em uma conversa ou uma briga aparentemente boba. São momentos que constroem um retrato autêntico da adolescência, como se estivéssemos relembrando algo que já vivemos ou que gostaríamos de ter vivido.
Outro ponto forte está na forma como a amizade entre as quatro protagonistas é retratada. As amigas estão presentes o tempo todo, e mais do que isso, elas parecem reais. As conversas fluem naturalmente, as piadinhas internas fazem sentido, tudo é muito espontâneo. É essa dinâmica que dá vida ao grupo. Você sente que está acompanhando uma amizade genuína, e isso cria empatia imediata. Mesmo nos momentos mais simples, como uma troca de olhares ou uma caminhada pelo cenário, fica claro que a força do jogo está nesses laços humanos.
A ambientação dos anos 90 também ajuda muito nessa imersão. As roupas, os acessórios típicos da época e as músicas. Mas a trilha sonora original merece destaque, ela funciona muitas vezes como tradução emocional das cenas, marcando momentos de tensão e ternura entre as amigas. A direção de arte também merece destaque nesse ponto, construindo cenários que pedem contemplação. Tudo acontece em um ritmo mais lento, quase como se o jogo te pedisse pra respirar fundo, prestar atenção nos detalhes e só… deixar a experiência falar por si.
Nesse clima, a câmera de Swann se torna um recurso narrativo e mecânico que dá ainda mais corpo à proposta do jogo. Ao longo da jornada, você pode usá-la para registrar cenas, paisagens ou momentos compartilhados com as personagens. Esses registros formam um diário visual, que pode ser revisitado e até editado, funcionando como uma espécie de memória dentro da memória. É uma mecânica simples, mas poderosa, que nos dá a sensação de participar ativamente do processo de construção dessas lembranças.

Mas nem tudo funciona tão bem quanto poderia. Se por um lado o jogo brilha na ambientação e no desenvolvimento da amizade das protagonistas, por outro tropeça na condução da trama. Isso aparece de forma clara na maneira como as personagens são mostradas em diferentes fases da vida. Na adolescência, algumas atitudes soam exageradas, e tudo bem, já que essa é uma fase de emoções à flor da pele e contradições, mas o jogo nem sempre consegue transformar essas instabilidades em drama convincente, o que acaba prejudicando parte da imersão emocional. Já no presente, o reencontro adulto tinha tudo para ser um dos pontos mais carregados de emoção, mas parece burocrático, sem o peso que décadas de distanciamento poderiam trazer.
O mistério central, que deveria ser o motor da narrativa, também sofre com isso. Ele é constantemente colocado em segundo plano, como se houvesse receio em encarar de frente os elementos sobrenaturais. Essa escolha acaba comprometendo o ritmo da história. Nos envolvemos com as personagens, mas sentimos falta de uma progressão mais clara no enredo.
E nesse ponto entra o “abismo”, o elemento sobrenatural central da trama. Ele parece surgir como metáfora para traumas e o desejo de fuga da realidade, um conceito cheio de potencial. O problema é que demora demais para se manifestar, e quando finalmente aparece, tem uma resolução apressada e quase anticlimática. A ideia tinha força para ser o fio condutor da narrativa, mas o jogo não parece disposto a explorá-la até o fim. O resultado é uma metáfora pouco aproveitada, que se desfaz sem deixar o impacto que poderia ter.

A conclusão só reforça essa sensação de incompletude. Em vez de fechar a história, o jogo deixa diversas pontas soltas, como se estivesse mais preocupado em preparar o terreno para uma possível sequência. O problema é que isso enfraquece a experiência atual, sentimos que caminhamos em direção a uma grande revelação que simplesmente não acontece. O efeito é frustrante, porque a promessa inicial era de intensidade e catarse, mas o que se entrega é apenas um desfecho apressado.
No fim das contas, Bloom & Rage acaba sendo uma experiência conflitante. De um lado, tem a atmosfera e a amizade bem retratada. Do outro, peca na coragem de explorar seu lado sobrenatural, no ritmo narrativo e em uma conclusão insatisfatória. Apesar disso, é injusto dizer que o jogo é ruim, dá pra ver que tem muito carinho ali, ele é sensível, e essa sensibilidade aparece em diversos momentos. São instantes que lembram por que a Don’t Nod conquistou tantos jogadores ao longo da última década. Há uma alma ali, perceptível e sincera, mas dispersa em meio a uma trama inconsistente.
O resultado é um jogo bonito, sensível em alguns momentos, mas incapaz de atingir o impacto que poderia. Você termina com a sensação de que havia uma história memorável ali, mas que não foi muito bem desenvolvida. Não é bem uma decepção amarga, e sim um suspiro de oportunidade perdida. Lost Records: Bloom & Rage poderia ter sido marcante como Life is Strange, mas não alcança a mesma intensidade emocional, e termina sendo apenas uma promessa.