Em 1962, O Pagador de Promessas, dirigido por Anselmo Duarte, conquistou a Palma de Ouro, o prêmio máximo do Festival de Cannes, um feito jamais repetido pelo cinema brasileiro. Outras seis produções nacionais vieram a receber prêmios em distintas categorias posteriormente nesse festival. O que poucos mencionam é que, dessas premiações, a maioria é oriunda de produções nordestinas, realizadas em solo nordestino. Kleber Mendonça Filho é o único diretor a ter duas de suas obras premiadas, sendo elas: Bacurau (Prêmio do Júri) e O Agente Secreto (Melhor Direção e Melhor Interpretação Masculina para Wagner Moura, o primeiro brasileiro a vencer nesta categoria).
Diante desse panorama, você deve se questionar: “onde eu quero chegar com isso?”. A resposta se torna evidente após assistir a O Agente Secreto. O Nordeste vem sendo sistematicamente apagado e escanteado há tanto tempo que a maioria sequer reparou.

A cena inicial do filme ilustra graficamente um homem morto, jogado no meio da estrada e coberto apenas por um papel. Ele jaz ali, assassinado, há mais de três dias, e a razão para tamanha desumanização é o Carnaval. Ninguém se importou em remover o corpo ou investigar o crime. As autoridades, em vez de averiguar o assassinato ou identificar aquele elemento que apodrecia sob o sol, voltaram sua atenção para um viajante que estava de passagem, apenas por considerá-lo deslocado e estranho ao lugar. Estes, por sua vez, ao saciarem a sua curiosidade e interesse, simplesmente vão embora, descartando ali a cena grotesca que há dias habitava o local. A forma como Kleber Mendonça exprime tão graficamente a desumanização do ser diante dos nossos olhos, também abre a nossa visão para a internacionalização do mercado cinematográfico brasileiro.
Antes de prosseguirmos mais a fundo na crítica, cabe um relato pessoal: sempre busco dar uma chance a filmes nacionais que considero interessantes. No entanto, o custo elevado de uma ida ao cinema, somado à enorme gama de filmes internacionais em cartaz, cria uma competição um tanto injusta. Afinal, sejamos honestos: entre Oppenheimer, de Christopher Nolan, e o documentário Retratos Fantasmas, também de Kleber Mendonça, a respeito dos cinemas de rua de Recife, sabemos bem quem levou a melhor nas bilheterias. Isso não implica que um é melhor que o outro, pois possuem objetivos distintos, mas levanta o ponto crucial: nós buscamos conhecer o nosso passado com o mesmo ímpeto com que buscamos o passado de países estrangeiros?

Em O Agente Secreto, Kleber Mendonça realiza uma amálgama de tudo o que o trouxe ao reconhecimento: temos diálogos extremamente naturais, uma fotografia primorosa e uma imersão tão crua que nos faz sentir parte daquela realidade. O espectador se identifica não apenas com o personagem principal e seus conflitos, mas com a vivência e o cenário expressos de forma detalhada e aberta. É o tipo de cinematografia que só pode ser realizada por quem conhece, vive e entende a fundo a comunidade que está trazendo para a tela.
Retornando ao ponto abordado no início, trazer esta trama para o cenário da Ditadura Empresarial-Militar em uma região diferente da que é corriqueiramente adaptada pela grande mídia, mostra não só a disparidade de contextos, mas também a natureza distinta do antagonismo. Aqui, ele é expresso não apenas pelo conflito político, mas por meio da xenofobia, do corporativismo e da corrupção dos poderes públicos. O filme aborda o boicote ao avanço científico público em detrimento de políticas privadas que tanto regrediram e rebaixaram o nosso país a uma dependência imperialista.
Quando vemos um protagonista neutro em relação a esses conflitos, com o objetivo unicamente de proteger a sua família, entendemos que o problema vai além da polaridade presente no cenário histórico, mas na defesa do direito humano de ir e vir. Wagner Moura interpreta brilhantemente um professor que se isola de todos para proteger sua família, porém, está constantemente ameaçado por ser alguém que não se rendeu ao antagonismo daquela época. É visível na trama que não há um antagonista físico, mas paira uma ideia macabra sobre como o mundo deve ser, quem deve viver e quem deve morrer, e isso é o que torna a história mais interessante.

Um ponto de destaque é a atuação do elenco de forma geral, que em parte retorna de Bacurau. Tânia Maria rouba a cena magnificamente interpretando a simpática Sebastiana; Thomás Aquino aparece por um curto período entregando toda a emoção necessária para o momento; e Udo Kier novamente traz o contraponto do personagem estrangeiro, mas em outro contexto. As adições ao elenco também são de tirar o fôlego, com destaque para Maria Fernanda Cândido, a natalense Alice Carvalho, Hermila Guedes e Gabriel Leone, que, embora apareçam brevemente, entregam tudo e agregam fortemente à trama.
Nenhuma interpretação é desperdiçada; pelo contrário, o elenco local, composto por atores e atrizes menos conhecidos do grande público, é o grande destaque e possui o maior tempo de tela. A história gira em torno de uma cidade em um período específico, o que pinta um retrato claro das pessoas desta época, algo que apenas um roteiro muito bem escrito conseguiria fazer.
Kleber Mendonça Filho já havia mostrado ser um roteirista de mão cheia, mas aqui ele parece superar tudo o que havia feito. Os gêneros se intercalam à medida que a trama avança, e a cada capítulo, mais e mais camadas são construídas, imergindo o espectador na narrativa. A sensibilidade presente em certas cenas traz uma visão que apenas alguém íntimo daquele momento conseguiria exprimir. Mais do que um retrato de um tempo, Kleber homenageia sua terra e a leva para o mundo por meio do seu olhar. No fim, tudo é muito natural: as paisagens, cenários e pessoas contam a história mais do que qualquer diálogo. Não há palavras para descrever, e nem precisa.
Como já abordado anteriormente, a cinematografia expressa aqui não é apenas visual, apesar de primorosa, mas também sentimental, indo além dos olhos. Quando pensamos neste filme como um possível concorrente ao Oscar, não há dúvidas de que ele tem chances de vencer, pois é a arte falando da própria arte e levando-a para lugares que há muito tempo vem sendo descaracterizados pela visão sul/sudestina de forma equivocada e caricata. O Agente Secreto abre o olhar daqueles que anseiam por mais e desejam, um dia, estar na amada tela grande. É a oportunidade de trazer novamente o Nordeste para o mundo e escancarar: aqui, nós também fazemos arte, cinema e música. Para mostrar a todos que, também, somos BRASIL.